O Homem de Saias e a Mulher de Barbas
O homem deu um passo incerto na direção da mulher que estava de costas. O pé ensapatado afundou na areia branca e fina. Ele pigarreou na tentativa de chamar a atenção dela sem assustá-la. Ela se voltou e quem se assustou foi ele. Manteve a postura, ensaiando um sorriso simpático e discreto.
– Com licença, moça. A senhorita sabe onde estamos?
Ela franziu o cenho levemente, parecia irritada e sua voz não disfarçava isso.
– Onde acha que estamos?
“Uma pergunta com outra pergunta” – pensou ele.
– Me desculpe – disse ele.
– Pelo quê?
– Por perguntar.
Eles se encararam naquela luz quase alaranjada, quase ouro, do quase pôr-do-sol que quase se refletia na água mansa.
– O que está olhando?
Ela estava ainda mais irritada.
– Desculpe outra vez – ele estava ficando confuso com aquela grosseria. – É que nunca tinha visto uma jovem de barbas negras como as suas.
A mulher correu os olhos por ele, desdenhosa.
– Poderia dizer o mesmo de suas vestes. Paletó, gravata, sapatos de couro e saias rodadas? Ótima combinação.
Ele quis responder ao gracejo esquisito, mas, sem querer, olhou-se. Estava mesmo de saias escuras como o paletó. Pensou em tirá-las. Não podia. Estava nu por baixo.
– Que brincadeira é essa? Quem me vestiu assim? Onde estamos? Quem é você? Que lugar louco é esse, afinal?
Ela ficou em silêncio, fitando-o. Quando o pânico do homem arrefeceu, ele ouviu a voz dela. Contudo, as palavras não existiam a não ser em sua mente. Era como se ele próprio as pensasse. E pensava. Olharam-se, imóveis.
– Estou tentando lembrar como cheguei aqui – disse ele em voz alta. – Não consigo refazer meus passos. Se você puder me ajudar, moça de barbas, eu agradeceria.
– Se você não sabe, eu não posso lhe dizer. Também não sei quem sou, o que sou ou o que faço aqui. Nem sei o que é aqui. Olhe ao redor, você reconhece algo?
Ele girou lentamente. A praia paradisíaca, a areia imaculada, o oceano esverdeado e sem ondas. Um lugar tão incrível sob aquela luz de fim de tarde, que o homem de saias sentiu-se relaxar.
– Bem, não é tão ruim, por certo.
– Não é ruim? É de enlouquecer. Por quanto tempo você aguentaria ficar num lugar que não se move?
– O que há de errado com este recanto, moça de barbas?
– Preste atenção, senhor de saias. Está ouvindo algum som além de nossas vozes? Está sentindo o vento, qualquer brisa que seja? Já reparou que o mar não se move, que é mais calmo que qualquer poça de chuva? Estou aqui há muitas horas, eu creio, e o sol não saiu do lugar.
O homem prestou atenção. Ela estava certa. Era como se habitassem uma pintura. Ele adiantou-se, afundando os sapatos na areia. Curvou os joelhos e estendeu a mão, tocando a água com as pontas dos dedos. Fria e molhada. Provou. Sal.
– Isso... é uma espécie de céu? Morremos?
Ela parou ao lado dele.
– Não sei. Não acho que o céu nos enlouqueceria. Talvez, o purgatório.
– O purgatório é ruim, é feio. Aqui é lindo demais.
– Lindo, mas é um nada. Um nada parado no tempo. E se é nada, é limbo – ela fez uma pausa. – Acho que morremos, sim, e estamos onde seremos julgados.
– E onde estão os juízes?
– Bom... Estamos aqui, você e eu. E eu não sei quem é você.
– Muito bem, me conte seus pecados, moça.
– Por que você não começa?
O homem de saias riu.
– Eu não tenho nada para confessar. Nada fiz para me arrepender.
Ela arregalou os olhos.
– Então, talvez eu deva julgá-lo por sua arrogância, prepotência, narcisismo. Como pode alguém não ter pecados? Só os recém-nascidos são inocentes.
– E você, que maldades tamanhas fez na vida?
A mulher de barbas baixou os olhos.
– Fiz muito mal. Ofendi pessoas, magoei, gritei e disse desaforos impensados. Explodi como uma panela de pressão e não deixei pedra sobre pedra nos corações daqueles que me amavam. Fiz isso inúmeras vezes. Fui um monstro sem coração.
– E se arrependeu?
– Sim, imediatamente. Todas as vezes. Fiquei com vergonha, com remorso, culpa.
– Pediu desculpas?
– A todos os que permitiram... sim. Aos outros, perdoei pela falta de perdão. Eles estavam certos, não eu.
– Nunca?
– Mesmo que eu tivesse razão, perdi-a quando gritei. Todas as vezes.
– Mudaria, se pudesse?
– Não conseguiria – ela deu de ombros. – Mas, agora que morri, que importa? Sua vez, senhor.
– Já lhe disse, não tenho pecados. Trabalhei, construí, procriei. Nunca gritei, nunca bati, nunca desobedeci, nunca conflitei, nunca explodi como panela de pressão. Sempre sorri, sempre aceitei, sempre engoli cada mágoa, cada tapa, cada insulto. E nunca me redimi de nada. Não havia coisas para me desculpar.
– Você nunca viveu.
O homem a encarou.
– E você viveu demais.
Silêncio.
– Somos opostos – disse ela. – Você fez o que eu deveria ter feito muitas vezes.
– Somos idênticos – disse ele. – Você agiu como eu gostaria, se tivesse coragem.
Calaram por um segundo mais.
– Engraçado – ele sorriu –, não sabia que se podia passar a vida na passividade, como eu.
– E nem eu que se pudesse passá-la na agressividade, como eu.
– Mas, você se arrependeu, moça. Se arrependeu de coração. Não tem pecados.
– E você? Se arrepende? De não ter sido nada? Sentido nada?
– Sim, com certeza – ele sorriu outra vez. – todas as vezes, a cada segundo. Mas, julguei estar fazendo o bem.
Mais silêncio. Olhos nos olhos.
“Somos o bem e o mal” – pensaram juntos, e se ouviram.
– Você tem o meu olhar – disse ele.
– E você o meu – ela respondeu.
– Você usa a barba que eu usava.
– E você minha saia predileta, eu já havia notado.
Mediram-se uma última vez. Ela estendeu as mãos.
– Você me perdoa?
Ele tomou as mãos dela.
– Se você me perdoar.
De imediato, os corpos da mulher de barbas e do homem de saias tremeram e se tornaram LUZ. E daquela luz, um único corpo se fez. Já não importava se macho ou fêmea. O perdão fora dado pelo único juiz que existe. Ele/Ela estava livre. A praia ficou deserta, as ondas quebraram na areia e o sol finalmente se pôs.
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