O Vazio e o Verbo


No princípio, ele se sentiu como Deus. Tudo era verbo e falar era possível. Ninguém mais para terminar as frases por ele. Ninguém a interromper seus raciocínios como se já os soubesse de antemão. Ninguém a criticar comentários ou a ignorar opiniões. Estava livre, podia falar sozinho o quanto quisesse. Finalmente!

No segundo dia, ele cantarolou pelos espaços que se preenchiam, como se criasse terras e dividisse mares. Cantou desafinado, errado, entoou hinos dos times que nem gostava. O sorriso aberto enquanto móveis e tapetes e almofadas surgiam no novo mundo. E ele viu, satisfeito, que aquilo era bom.

Depois do ato de criação, sentou-se entre outros deuses como ele, todos falastrões e sorridentes. E a conversa se estendeu por horas e copos a fio. Ao fim da noite, nem a língua nem o cérebro conseguiam formular mais nada minimamente coerente. Assim terminou o terceiro dia.

Após a ressaca, sentou-se confortavelmente em seu trono-poltrona, de cuecas, com o controle-remoto na mão. O cetro dourado repleto de botões e de canais era todo seu. Xingou cada cena e cada frase da odiosa novela. Assistiu o capítulo todo só para poder insultar, gargalhando a cada impropério. Pulou aleatoriamente de programa em programa. Feliz da vida porque voz nenhuma o mandava sair dali. Ele era seu próprio rei. Terminou roncando na poltrona, com o pescoço torto. 

Passou assim aquele princípio, aquela semana. Ao final de tudo, calou-se. Não cantarolou, não praguejou, não arrotou alto e até tomou banho e vestiu cuecas limpas por sua própria opção. Não ligou a televisão, nada havia para ver que lhe valesse o esforço. Ficou quieto no sétimo dia, e não achou nada bom. O silêncio oprimia, deprimia. Chegou a sentir certa falta das interrupções de frases, das retaliações, das ordens atiradas à face. 

Pegou o telefone, discou, esperou. Ensaiava em pensamento. Diria que só ligava para saber como estava ela, as crianças, o cachorro. Se precisavam de algo. Era mentira. Tinha saudades da voz dela. Quando ninguém atendeu, ele ficou infeliz. A sala tranquila, a quietude a pairar por seu reino particular. Que tédio aquilo, não ter com quem conversar.

Comentários

Anônimo disse…
Tocante, como não poderia deixar de ser, vindo de tuas mãos!
Obrigado por esta linda reflexão sobre valores.
Beijos mil!

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