Rapsódia em Azul

Para Roberto Muniz Dias

– Gosto de Gershwin – disse ele, tentando encerrar a conversa.
– Ah, cold jazz. Você conhece Stan Getz e Chet Baker? Claro que conhece. A versão de Stella By Star, que os dois interpretam juntos, é a minha preferida.
Ele não conseguiu interromper a virada de cabeça e o olhar de espanto na direção da moça. Chet Baker? Ao fundo, algo parecido com um New Order fora de tom ajudava na bizarrice da situação. Ele sabia que sua expressão era uma mescla de dor e susto. Não podia evitar. Ela deu mais um gole em sua bebida, sem olhá-lo de frente. Súbito, ele sentiu necessidade de se desculpar.
– Gosto de Beatles... gosto de Rita Lee cantando Beatles – e depois de um segundo. – Conhece?
– Sim, tenho esse CD. Mas, voltando ao jazz, você conhece Wild Man Blues, o disco do Woody Allen? Aliás, meu escritor favorito.
– Cineasta – rebateu ele.
– Sim. Mas, você já leu Cuca Fundida? É fantástico, vários fragmentos de roteiros e contos. E combina perfeitamente com o jazz que ele faz. Um artista completo, na minha opinião.
Ele ficou com vergonha de admitir que não sabia que Woody Allen também publicara livros. Há quantos anos não tinha tempo de ler... No mesmo momento, o pianista ruim arrisca um As Time Goes By. E ele teve medo de que ela começasse a falar de Casablanca, o filme da vida dele. Mas a moça ficou quieta. Ainda não olhava para ele.
O que era aquela conversa, afinal? Sentara ali, no balcão do bar do hotel, apenas para passar o tempo. Viajara sozinho para a reunião do dia seguinte. Odiava ficar em hotéis. Se sentir solitário era o mais agradável das estadias... Foi quando ela sentou no banco alto ao lado do dele e cruzou as pernas. “Oi. Noite chata, não?”
Ele esboçara um sorrisinho simpático, ao mesmo tempo esnobe, levando o on the rocks aos lábios para não precisar responder. De viés, mirou a figura feminina de cima abaixo. Pernas roliças enfiadas em meias escuras fora de moda. Sapatos altíssimos, pouco alinhados com o micro vestido preto, tomara-que-caia, um ou dois números menor que o manequim ideal. Os peitos espremidos no decote reto, quase gritando para saltar da asfixia. O rosto redondo, típico de alguém que controla o peso a muito custo. O cabelo liso e reto, quase com uma placa dizendo “recém saído da química de salão”.
Ela começou a conversa indesejada falando do ambiente abarrotado e pedindo uma caipirinha de morango. Ele não emitira qualquer sílaba até ela falar de música e ele ter a péssima ideia de tentar se exibir, esbanjar sua cultura. Péssima ideia!
– Está aqui a trabalho? – ele quis saber sinceramente. Arrependeu-se da pergunta de imediato. Ela poderia interpretar mal.
– Quase a passeio – disse ela, alheia ao desconforto dele. – Vai haver uma feira de literatura na cidade. Você sabia? Pois é. Dois de meus autores vão autografar.
– Você é editora?
– Coordenadora de marketing. Sirvo de babá aos escritores, por assim dizer.
Ele quis saber sobre a linha editorial. Estava ficando curioso. Ela explicou em poucas frases quase cansadas. Romancistas, todos dramáticos, melodramáticos, ficção popular. Nada de muito útil ao cérebro, segundo ela.
– Deve ser um trabalho interessante.
Ela deu de ombros.
– E você? Trabalho ou passeio?
– Trabalho. Um cliente que tenho de atender – outra frase dúbia. Por que estava se preocupando com o que ela pensaria? Mesmo assim, arrematou – Sou engenheiro.
– Ah, um matemático.
Exclamação seguida de sorriso. Ele estava perdido.
– E qual seu instrumento?
Sim, definitivamente, ele estava perdido. Outra vez a cara de susto e dor. Ela explicou, quase uma caridade.
– Um colega de cátedra... sim, já fui professora... me disse uma vez que todo matemático é um músico nato. Que instrumento você toca?
Pela primeira vez na noite ele esboçou um sorriso sincero. Desceu os olhos até o copo quase vazio antes de responder.
– Já arrisquei um pouco de piano.
– Ah, por isso a música o está incomodando tanto. Também achei esse pianista péssimo.
O bar não estava mais tão cheio. Várias mesas vazias. Ele pensou em convidá-la a uma delas, mas ficou calado. Sem querer, seus olhos pousaram nos joelhos cruzados quase nus. Sentiu-se enrubescer. Isso não era bom. A pele clara demais ficava facilmente vermelha até a raiz dos cabelos curtos e louros.
Ela girou no banco e pediu outro drinque ao bartender. Impossível não reparar outra vez na moça enquanto ela mexia o canudinho dentre pedaços de morango e gelo. E ele teve de admitir que se enganara. Ela nada tinha de gorda ou roliça. A cintura fina, o quadril arredondado, os cabelos escuros soltos, cobrindo toda a extensão das costas retas. Uma pequena tatuagem de algum ideograma na escápula direita.
Ele desviou o olhar assim que ela voltou à posição original, de costas para o balcão. Agora, mais do que nunca, ele estava confuso. Quase atordoado. Nunca antes se sentira atraído por uma mulher. Não sabia mesmo como tinha acontecido. Talvez fosse por ela gostar de jazz, ou por ler cineastas, ou pela curva dos seios que agora ele não conseguia parar de olhar. Pensou em pedir outro uísque, mas teve medo do que poderia acontecer depois.
Remexeu-se, inquieto. Aquilo era um completo absurdo. Nem saberia o que fazer com uma mulher, caso ela estivesse em sua cama. Só o pensamento o fez estremecer. Mas aquela desconhecida o atraíra, esse era o fato. Reflexo de sua solidão, talvez. Há tempos não tinha um namorado fixo. E aquele hotel tão frio, tão impessoal. Já não lembrava da última vez que despertara nos braços de alguém. Aconchegado, protegido. Em que momento se tornara tão ermo?
– Acho que você está mesmo precisando de um abraço.
A frase da moça foi como um tapa. Estavam quietos há muitos minutos e agora ela lia seus pensamentos. Não podia ser o uísque, só bebera uma dose. Ele ergueu os olhos para descobrir que ela o fitava de frente. Os olhos negros nos dele pela primeira vez desde que chegara. Foi quando ele se deu conta que estivera ausente, numa postura derrotada, introspectiva. Com certeza, parecia triste aos olhos dela. Mesmo querendo desfazer aquela impressão, tão certeira, não soube o que dizer.
– Tem gente que nasceu pra ser abraçada – ela continuou, um tom maternal. – Algumas pessoas deveriam ganhar pelo menos um abraço por dia. Assim, funcionariam melhor. Não faz bem toda essa tristeza que você guarda aí no peito.
Se ela não parasse logo, ele sabia que ia chorar. Apertou os dentes. Ela entendeu. Prontamente, tirou o copo das mãos dele e deixou sobre o balcão. Saiu de seu acento e, sem maiores explicações, colou o corpo no dele, envolvendo-o num abraço tão gostoso, tão profundo. Ele não conseguiu reagir. Levou vários segundos para devolver o abraço, olhos fechados e o rosto escondido na curva do pescoço perfumado dela.
Quanto tempo durou aquele abraço silencioso, ele nunca saberia dizer. A mão dela num afago delicado em seus cabelos. Quando se afastaram, ele se sentia leve como se tivesse chorado por horas. Nem se importou com as reações de seu corpo pela proximidade dela. Excitação não era exatamente a palavra. Era mais como gratidão. Com um sorriso terno e um beijo no rosto, ela pendurou a bolsa no ombro e tentou ir embora. Ele a segurou pelo braço, um tanto bruscamente.
– Espere. Vamos tomar mais um drinque. Se você quiser, podemos ir ao meu quarto. Conversar sobre jazz ou cinema. Eu nem sei seu nome.
Ela sorriu, um pouco frustrada. Afastou o cabelo do rosto e o encarou.
– Desculpe. Acho que cometi um erro. Achei que você seria inofensivo. Não me leve a mal, eu não gosto de homens.
Ele assistiu, congelado, enquanto ela sumia do bar. Ficaram os dois sozinhos, ele e sua ereção. A sensação do carinho gratuito ainda a esquentar a alma. Ela estava certa, ele precisava de mais abraços.

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