Ao Fim
Quando tudo
acabou, eu ainda estava aqui. Quando os fragmentos deixaram de existir, eu
ainda permanecia no mesmo momento, a observar o espaço absolutamente vazio. Tão
denso quanto a própria matéria. Mas, estou me adiantando...
Foi o amanhecer
do último dia. Último dia. Ninguém sabia ainda. Nem eu. Ainda não. Ninguém se
deu por conta. Contudo, aquele dia já começou diferente. Os madrugadores, como
eu, talvez tenham percebido que os pássaros corriqueiros não cantavam
acompanhando o primeiro raio de sol. Eles foram os primeiros, tão frágeis que
eram. Um silêncio incomum guardava o raiar daquela manhã.
Todavia, o dia
não começa com o sol. Antes ainda, a madrugada foi quieta. Os notívagos que,
como eu, voltaram olhos ao negro manto acima das luzes da rua, quem sabe tenham
percebido que, uma a uma, pequeninas estrelas deixavam de brilhar. Apagavam-se,
simplesmente. Uns menos atentos poderiam pensar que se preparava um amanhecer
nublado, chuvoso. Mas, eu podia ver a ausência de nuvens e o apagar das estrelas.
Até que não sobrou nenhuma ainda antes do amanhecer.
Também não
houvera lua. Um desatento nem pensaria muito a respeito, deduzindo uma noite de
lua nova. Mas, eu sabia que era semana de lua cheia. E onde estava o disco
branco que nos sorri de cima? Apenas não estava lá.
Enfim,
amanhecia. Uma manhã sem nuvens, sem pássaros, sem vento. Nem ao menos a menor
e mais leve brisa. Folhas inertes nas copas das árvores. Gramíneas estáticas.
E, incrivelmente, flores fechadas. Cada pétala recolhida e enrolada encimando
um caule vergado sob o próprio peso, como se sustentasse pétalas de chumbo. E
estavam todas da cor do chumbo.
Ao longo
daquela primeira hora de sol, fiquei apenas observando as mudanças ao meu
redor. Vi o púrpura no horizonte virar dourado. Então, lentamente, os sons do
mundo despertando chegaram aos meus ouvidos já tristes.
Ao início da
segunda hora, celulares, motores e televisões já disfarçavam o silêncio mórbido.
Cigarros acesos e sapatos rápidos, quase ninguém entendeu que aquele dia havia
começado errado.
Com a terceira
hora de sol, percebi certo alvoroço. Parei e apurei os ouvidos. Uivos, miados,
relinchos, balidos. Cheguei a pensar que todos os animais do planeta estavam
fazendo barulho ao mesmo tempo. E, provavelmente, estavam. Quase uma hora
depois de começar, a algazarra foi cessando de forma acelerada. Voz a voz, cada
animal se calou irreversivelmente, desaparecendo como se jamais houvesse
havido. Imperou, a seguir, uma quietude triste por baixo do lamento metálico das
cidades.
O cair da
quarta hora fez ouvir os primeiros prantos humanos. Choravam aqueles por seus
animais desaparecidos. Alguns assustados, outros confusos. A maioria
praguejando irritada. E uma sensação de urgência se instalando nos corações dos
que, aos poucos, começavam a entender.
Durante a
quinta hora, vi as plantas finalmente murchando e as árvores secando como se o
sol forte tirasse delas até a última gota de seiva. As flores fechadas nos
caules vergados agora não passavam de palha enegrecida, que se desfazia pelo chão.
Em pouco tempo, verde nenhum havia. Foi quando o primeiro choro solitário de
criança se fez ouvir.
O lamento
arrancou gemidos e provocou arrepios nos transeuntes atônitos que começavam a
ocupar as calçadas. Muitos deles atraídos pela cena desértica que antes eram seus
parques, praças e jardins. Outros apenas alcançando a rua na hora do almoço,
enquanto os relógios já não funcionavam mais.
Quando o
primeiro passante reclamou do calor e da sede, já era a sexta hora. Súbito,
todos estavam sedentos e esbaforidos. Mas a água não havia nas torneiras, nas
piscinas. Notícias chegavam de boca em boca cochichando que os rios paravam de correr,
mares se estavam vazios, lagos viraram manchas lamacentas. Sem que ninguém
percebesse, oceanos e geleiras evaporavam ao longo daquele dia errado.
A primeira
pedra caiu ao final da sétima hora, no mesmo momento em que se descobria que
explosões devastavam usinas e refinarias por todos os cantos. As notícias
corriam, assim como as equipes de notícia. Enquanto houvesse combustível, helicópteros
e furgões com emblemas de emissoras continuariam transmitindo.
Mas, como ia dizendo,
as pedras começaram a cair quase à oitava hora. Tijolo por tijolo, prédios
inteiros ruíam. Casas, pontes, monumentos esfacelavam-se. Em meio ao pânico
generalizado, eu vi as cidades que viravam pó.
As transmissões
de televisão e internet cessaram juntamente com os celulares e motores. A nona
hora trouxe o medo da noite que viria. Quando a energia acabou, até os mais
otimistas ficaram histéricos. Ninguém se preocupava em procurar corpos debaixo
dos escombros que continuavam a se desfazer em pó. Tanto porque, nada
havia lá quando o pó também se desfazia.
E assim sucedeu
a décima hora, com montanhas desmanchando sem qualquer abalo sísmico, virando
areia, e a areia virando em
nada. O asfalto das estradas, amolecidos pelo calor,
escorriam por fendas e rachaduras imensas, desaparecendo dentro da terra. E, na
décima primeira hora, quase nem mesmo havia chão para sustentar rachaduras.
Quando o sol
começou a se apagar, com a chegada da última hora de luz, os que choravam
perceberam que o disco de fogo não se movera de seu ápice no céu. O planeta
havia parado e não era a aurora que fazia púrpura o astro-rei. Era como uma névoa
densa que encobria a luz, mas que, ao mesmo tempo, não estava lá. Ou era o próprio
sol que se apagada diante dos olhos desesperados dos que ainda respiravam.
E então, na décima
terceira hora, tudo se apagou. Foi apenas nesse momento que fechei meus olhos,
tentando não ver os rostos amedrontados, enlouquecidos, que acompanhavam os
berros e súplicas. Tantos gritos que também foram cessando, calando, voz por
voz.
No instante em
que o clarão do sol tocou meu rosto novamente, abri meus olhos e procurei em
torno, ainda a tempo de ver os últimos fragmentos do planeta se desintegrando.
Restou o nada e o silêncio. Onde antes havia vida, agora só uma órbita vazia.
Até a poeira cósmica, depois de algum tempo, desapareceu.
Fiquei ali
ainda por um ínfimo de instante. Depois, deixei meu momento e parti. Não dei um
último olhar e não lancei um último suspiro. Apenas saí em busca de outro mundo
ao qual observar.
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