Kafkiando
Acordou se sentindo Kafka. Não
Gregor-Barata; isso já se sentia diariamente. Mas, a própria mente deturpada do
criador do homem-inseto. Sentiu que podia transformar tudo, mutilar todos.
Arrancar patinhas. Sentiu-se a escritora do destino. Mas, só por um segundo, antes de voltar a se
sentir Barata. Assim, com letra maiúscula mesmo. Como um nome do meio pendurado
num crachá.
Tomou ânimo no café da manhã.
Outra coisa qualquer não conseguiria digerir. Rumou ao mundo infeliz e tedioso
do dia a dia. De quando em vez, a sensação voltava e, mentalmente, dava patas
espinhentas e asas marrom-transparentes aos que lhe interrompiam o caminho.
Chegou a conceder antenas a alguma colega de trabalho. Brincou de deusa-inseto,
vespa-rainha, mas não falou com ninguém. Esqueceu-se de criar diálogos.
Voltou ao ninho quando o sol dormiu, direto para o silêncio
do claustro. Bebericou um veneninho, só para não perder o hábito. Evitou o
espelho, só por conveniência. Arrancou as próprias asas, só para não
desperdiçar a dor. De cada poro, surgia um espinho. Da saliva, o fel grudento,
meio musgo verde, meio lava. Metodicamente, lembrou-se de não morder a língua.
Acabou o dia como se acaba um
romance ruim, fechando a capa com força depois da última linha. Permitiu-se
voltar ao reinado criador. Teceu teias pegajosas, despejou detritos pelo
caminho. Sujou os lençóis da cama desfeita com pedaços de ego que se
desprendiam com facilidade. Calçou sandálias feias e pisou em si mesma,
esmagando-se de repente, deixando como epitáfio uma mancha de gosma
esbranquiçada no carpete.
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