Deleite



O veio rubro latejante se projetava por entre os montes brancos que eram os seios. A fina linha abria seu caminho em ondas cadenciadas, fluindo por sobre o colo perfumado e manchando sem pudores a renda do decote. O peito arfava de forma quase imperceptível enquanto os lábios entreabertos perdiam lentamente seu ardor róseo. A dama dormia, inebriada pelo vinho que se lhe escapava do hálito. Serena como uma flor eternizada numa natureza morta, ela jazia entre as almofadas macias do divã. A pele já quase tão pálida quanto seu vestido enfeitado com pequeninas fitas cor de pérola, contrastando apenas com o negro azulado dos cabelos crespos, presos dignamente num coque no alto da cabeça.

A sala, iluminada por candelabros de bronze, trazia tapeçarias coloridas nas paredes e figuras florais nos quadros suspensos; tudo parecendo dançar à luz de tantas velas. Nessa claridade difusa, a dama tornava-se ainda mais irreal, quase etérea, uma carapaça translúcida que apenas no frescor da aparência se assemelhava a uma pessoa de verdade. Sua pele leitosa parecendo derreter-se sob o vão bruxuleio dos pavios incandescentes. E nada mais se movia. Nenhum som se ouvia no aposento. Nem mesmo a mais leve brisa parecia soprar.

Pousados imóveis ao lado dela, não mais do que uma sombra no recanto mais escuro do quarto, dois olhos vítreos a fitavam. Olhos de um verde escuro intenso, transbordantes de uma paixão inexplicável, inequívoca, avassaladora. Lábios cerrados, sem qualquer tensão. Costas eretas e cabelos bem alinhados presos por um cordão de seda. Uma figura única, esplêndida, absolutamente inexpressiva em sua beleza ambígua. Quieto o suficiente para confundir-se com a mobília. Se mais alguém habitasse aquele cômodo, diria que só a moça dormia ali, que mais nenhuma criatura viva estava na sala, tão imaculadamente inerte era a figura vestida de veludo púrpura e negro que se debruçava sobre o divã. Uma simples escuridão sem forma cobrindo a jovem, não fosse por sua pele. Aquela pele de mármore fino, sem cor, sem movimento, sem vida. Uma estátua fria. Mas, ao mesmo tempo, os olhos verdes denunciavam o quanto aquele ser estava vivo, o quanto estava atento a cada detalhe da dama deitada no divã, logo abaixo de si.

Súbito, ela deixa escapar um suspiro. Tão suave e inesperado aquele som que inunda o ambiente, a ponto e sobressaltar seu observador de pedra. Ele piscou uma, duas vezes, como se apenas naquele instante se desse conta de que realmente estava ali, olhando para ela. Ou como se só naquele momento a visse como algo além do mundo dos sonhos. Então, ele também suspirou. A mão enluvada moveu-se, felina, com a leveza do silêncio que o rodeava. Com a outra mão, removeu uma das luvas e antes de tudo afastou uma mecha escura que lhe caía sobre a testa. Só depois disso, a sombra estendeu a mão pálida na direção da moça.

Não chegou mesmo a tocá-la. Mansamente aproximou a ponta dos longos e gélidos dedos dos lábios delicados e quase desprovidos de cor. Ficou imóvel por um momento, sentindo a respiração escapar cada vez mais fraca. Recolheu a mão e, após um breve instante de hesitação, deixou o corpo deslizar para baixo, calmo, como se fosse beijá-la. E beijou. De um modo sutil e com tamanha ternura, encostou os lábios nos dela, ainda mornos. Mesmo sem qualquer movimento aparente, a sombra entregou-se à onda de eletricidade que lhe percorria, incendiando-o durante os intermináveis segundos daquele beijo. Juntos, eram como uma das imagens bordadas nas tapeçarias, duas jovens e belas crianças eternizadas num momento de amor.

Quando tornou a abrir os olhos e lentamente afastou o rosto para observá-la, a jovem já não respirava mais. Pálida como uma escultura de cera. O fluxo pulsante, que lhe regava o colo e lhe desenhava uma rosa cálida no rendado entre os seios, finalmente se extinguindo, definhando até parar por completo. A vida saindo dela como se nunca a tivesse habitado. E só então ele se ergueu. E seu rosto de mármore tinha ainda os olhos vítreos, todavia marejados e acalentando uma dor maior do que a própria morte. Inacreditavelmente, depois disso, a sombra sorriu.

Quando o silêncio se tornou murmúrio e o murmúrio se transmutou em vozes, a porta do cômodo foi aberta e várias pessoas apareceram, apressadas e lamentosas. Rodearam a jovem e já choravam seu descanso trágico sem mesmo saber como havia acontecido. Gritos e gemidos encheram o ar. As velas dançavam como folhas na ventania. Tudo naquele quadro dolorosamente impreciso estava errado, tétrico, irremediavelmente acabado. Mas, ao mesmo tempo, uma paz aconchegante e cheia de ternura envolvia o rosto pálido da moça no divã e teimava em alcançar cada um dos inconsoláveis que a velavam. E dentre o tumulto crescente, já nenhum olhar de mármore existia, já nenhuma sombra ousava pairar sobre ela.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coração Pirata

Dia Internacional da Mulher: uma paródia

Sobre escrever errado