Abandono (III)
Meu pecado é a preguiça. Meu
álibi é a inconstância. Escondo-me por detrás de muros bem caiados, grafitados
de imagens fortes, cores intensas. Mas o fato é que me escondo. O fato é o
engodo. Mais fácil ocultar meus defeitos sob véus dourados a abandonar hábitos cruéis.
Muito mais fácil, eu digo.
Abandonar suportes psicológicos
pode ser tarefa árdua, indizível. Surpreendente constatação de que, às vezes, só
falta vontade. Só pela preguiça não nos modificamos. E acreditamos que seja
assim, que sejamos isso, que não queremos mudar. Mentira das mentiras que
mentimos a nós mesmos. Mentira que minto a mim.
Por mais que doa abrir os olhos a
cada amanhecer, por mais cruel que seja esse espelho de todo dia, há ainda
maior crueldade no turvar próprio da visão. Mais vale a vertigem da transformação
do que a inércia mortuária. Faltam forças, sobram lágrimas. É real, contudo, o
despertar que vem desse trânsito de Vênus.
Abramos os olhos, escancaremos o
peito, ergamos queixos e elevemos brados. Partamos, nós, camuflados, para o
mundo desconhecido da renovação. Dói, eu sei. Sacrifica, mas liberta. E
liberdade é tudo aquilo pelo que ansiamos nessa existência pseudocriativa a que
nos lançamos.
Meu pecado é não abrir de fato
meus olhos e olhar-me, a mim, sem meus véus de ouro. Meu álibi é a certeza
fajuta de ter-me construído plena. Minha mentira é doutrinar-me, hora após
hora, nessa cartilha enclausurante do existir em velhos vícios. Minha lei é
falha, cabe apenas a mim abrir mão, abandonar tudo e (re)começar a viver. Um pequeno
passo de cada vez.
Comentários