O Desafio da Águia
Quando a águia alcança 40 anos de
idade, tem duas alternativas. Ou deixar-se morrer, ou passar pelo desafio
doloroso da renovação. Assim diz a lenda, a fábula, a zoologia, sei lá quem
mais... Mau presságio esse. Tentei encarar essa idade marcante como mera
alegoria. “Eu que sou águia”... bonito isso. Poético. Só que não... Não deu, a
tal alegoria não deixou passar em branco...
Meu momento de renovação começa
bruscamente. Sou levada a encontrar o ninho na fenda da montanha, à sombra de
qualquer rocha muito alta. Lá, nesse ninho, deve ocorrer a transformação. Lá
arrancarei meu bico com golpes violentos na pedra fria. Nada comerei ou beberei
até que cresça outra vez...
Em seguida ao novo bico
restaurado, afiado e rijo, com ele arrancarei minhas próprias unhas e minhas próprias
penas... Nua e indefesa, permanecerei no frio da montanha até que novas garras
e plumas surjam e me cubram. Só depois poderei alçar novo voo e ganhar o
alimento, a água, a liberdade e a vida.
Assim, dizem, acontece com a
águia. Assim devo esperar que aconteça comigo. Em vez do bico arrancado, minha
mácula egóica extirpada. Violência e despudor que me obrigam à fome de estima
por mim mesma... Sou nada e nada
permaneço, esperando que as partes se colem de uma tênue verdade despedaçada
chamada “eu”.
Se tiver a sorte de reaver meu “bico”,
deverei arrancar minhas unhas e penas. Toda a plumagem que nasceu comigo, a
soberba e a vaidade. Meus pecados e meus temores expostos ao frio da tal
montanha. Devo olhar para mim e reconhecer meus erros. Devo olhar para mim e
entender que nada sou. E, só então, olhar adiante.
Se tiver a sorte de ter minhas
unhas de volta, será porque descobri novas armas, novas maneiras de enfrentar
meus medos e desalinhos. Será porque ganhei consciência de mim e de minhas
limitações. Será porque posso outra vez agarrar-me à vida que se esvai e se
transforma. Será a dádiva de saber que amadureci e sou mais forte.
Se tiver a sorte de recuperar
minhas penas, será porque aprendi a perdoar meus deméritos, compensar minhas
falhas, reequilibrar meu caráter e, acima de tudo, porque me desfiz da parte
podre de mim. Aquela que me encerrava o espírito, que me travava e pesava no
fundo da alma, me arrastando para o chão como chumbo.
E se eu, finalmente, estiver
outra vez completa, com bico, garras e penas, só assim abrirei minhas asas e
sentirei o vento. Sim, saberei voar, está em minhas células esse conhecimento
ancestral. E ganharei os céus, pronta a caçar o novo mundo que me foi
destinado. Porque tenho 40 anos e sou águia. E não pretendo, de forma alguma,
por nada no mundo, parar de voar!
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