Abalo Sísmico

Amanheceu monótona e normalmente. O sol dourou a torre do relógio antes de banhar o resto da cidade. A torre quadrada, da altura de quatro casas, vigiava e se impunha diante da cidade rasteira. Os ponteiros que nunca atrasavam, marcavam 6h32 da manhã.

Ao redor da torre, os ruídos triviais despertavam. Pássaros, carros, crianças, buzinas, máquinas. E o dia seguiu sob a mira do redondo relógio quase branco no topo da torre quadrada de pedra gris, virado para o leste distante. Até que, repentinamente, o som parou.

Por poucos segundos, não houve barulho ou vento. Veio a onda, a avalanche invisível. A terra tremeu e apavorou, rugindo mais alto do que qualquer motor. E parou tão súbito quanto começara. Também demorou alguns segundos para que tudo virasse histeria lá embaixo, por entre as ruas de casas rasas.

Os ponteiros pretos de ferro fundido marcavam 11h55 da manhã quando o pânico pareceu amainar. Só um abalo sísmico. Nenhum dano aparente. E o meio-dia passou sem fome, e a tarde aconteceu assistindo a correria agora organizada.

Quando todos os vasos de flores voltaram aos parapeitos das janelas, assim que as novenas calaram as rezas, enquanto aquele dia de trabalho interrompido findava e o sol do oeste a tudo tingia de púrpura, novamente o som se foi.

O rugir do fundo da terra em fúria foi terrível. 18h44. Casas desabaram, incêndios iluminaram a quase noite. Gritos, choro, sinos das igrejas repicando. Sirenes e luzes piscando por todos os lados. As paredes maciças da torre do relógio ganhando rachaduras profundas. Era o caos na cidade.

Anoiteceu rápido e os faróis dos veículos em disparada ficavam cada vez mais distantes. Demorou, mas finalmente a cidade aquietou em opressora ausência. Nada se movia ao pé da torre. Nem pessoas, nem animais. Nem o fogo queimava, nem o vento soprava. A cidade morrera.

Apenas o soberbo relógio em sua torre gris seguia a girar seus precisos ponteiros. E o silêncio acompanhou a escuridão sem lua. Tudo acabara e a torre lá estava, firme. Quase firme. E então, veio o tremor uma última vez. Um tiro de misericórdia, botando abaixo o que resistira. Pedaço após pedaço deitando ao solo.

A torre tombou às 23h29, última sobrevivente daquela sequência de tormentas inadvertidas. Já não era majestosa, já não era mais que um amontoado disforme de pedra quebrada. E a terra se calou, levando a cidade consigo.

Todavia, o tempo não morreu com a cidade abandonada e destruída. O tempo sobreviveu no relógio caído de lado na rua. O vidro rachado como uma ferida aberta ainda protegia os ponteiros. E os ponteiros ainda se moviam. O relógio sem torre marcava 23h57. Aquele dia acabara.



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