O Gostar-se



Noite. Calma. Harmonicamente, minha consciência desliza por sobre a pele que é minha, meu véu, meu corpo... Intensa, etérea, sinto-me em pleno existir. Estou aqui. Sou dona de mim mesma.

Quem me visse, acharia fácil esse interesse adquirido por minha própria pessoa, esse gostar íntimo. Fácil apegar-se à personalidade, aos arroubos de melodrama, aos afãs quase insensatos de criatividade, de soberba.

Não saberia, esse que observa, que cada passo até o topo foi em dor, em fogo, em pranto. Não encontraria em meu rosto qualquer marca de denúncia do flagelo, qualquer cicatriz. Não acharia motivo de tristeza, mas ele existe. Ou existiu, ao longo dos feitos gloriosos que represento agora, hoje.

Quem espia apenas pela fresta do brilho jamais verá a verdadeira face da tragédia, ou mesmo os grilhões rompidos sob extremo esforço. Não conhecerá a face da fera que doutrinei e domei sem matar. Essa luta foi só minha e me lembro dela, de tudo, todos os dias.

Lentamente, o cadafalso de emoções de agiganta e vai engolindo, uma a uma, as expectativas criadas. Fomentado por ilusões diáfanas, o monstro aproveita das inúmeras derrotas, das falhas, das ideias perdidas. Cada passo em falso derrubou-me. Cada vez que caí, senti dor.

Foi por essa estrada pedregosa que assentei pé ante pé e caminhei. Tombei, sim, diversas vezes. Mas, ergui-me, a cada vez mais dormente e mais endurecida. Força não vem quando queremos, vem quando a alternativa é a morte apenas.

E hoje, mente e corpo num mesmo plano simbiótico, atesto aos que me espiam que guardo minhas marcas de batalha e que elas me fazem quem sou. Hoje, gosto-me mais por elas, as cicatrizes. Cada qual me lembrando de como e porque cheguei aqui. E digo-me “bem-vinda” todos os dias.

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