Homem, um animal social
Da série Análise da Busca - Teoria da Solidão Crônica
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O ser humano
é um espécime de grupo por essência. Desde os primórdios de evolução da raça
humana, vivemos em bandos, nos relacionando e interagindo com seres
semelhantes. Somos o que podemos nos acostumar a chamar de animais sociais. O
desenvolvimento desse cunho social, a sociedade evoluída gerada a partir do
modo racional de operar, desenvolveu a civilização tal como a conhecemos e
absolutamente baseada na convivência em grupo.
Bandos, tribos,
povoados, cidades, países. Somos predestinados por nascimento a pertencer a
determinado grupo, raça, casta, família, nacionalidade, etc. Em foro mais
íntimo, cada um de nós tem, a princípio, um núcleo familiar direto e outros
pequenos agrupamentos de convivência pessoal. Somos ensinados a conviver e a
trocar experiências com outros seres humanos.
Nesse
sentido, desenvolvemos laços de afetividade para com os outros do grupo, os
mais próximos ou aqueles com os quais desenvolvemos certa afinidade mais relevante.
Conseguimos desmembrar grupos grandes em, por exemplo, conhecidos, amigos,
melhores amigos. Dessa gama de afetividades, e também pela pressão por
socialização e continuidade da espécie, somos impelidos a buscar parceiros para
a vida íntima, pessoas com quem desenvolveremos nosso próprio núcleo familiar,
gerando assim um novo agrupamento, um novo bando.
Claro que
teremos sempre aqueles que preferem a contracultura, o antissocial, que optam
pelo isolamento. Relatos históricos nos falam sobre eremitas habitando cavernas
e outras alegorias, ficcionais ou não, do mesmo parâmetro. Mesmo algumas
comunidades se fecham para a convivência mundana. Templos e mosteiros de
clausura existem por todas as épocas e religiões. Estes, contudo, não são
apartados dos de seu núcleo, que se refaz na ordem que seguem e no professar
dos ritos da religião e afins. Andarilhos como os santos homens da Índia seguem
o mesmo princípio, apesar de não se isolarem fisicamente dos semelhantes, mas
preferirem habitar florestas e arredores das cidades ao interior das mesmas.
Diferente da
maioria das espécies de mamíferos, essa união com o parceiro é reservada e
particular, normalmente monogâmica e não compartilhada por nenhum outro membro
de fora do bando. Essa especificidade é, contudo, autoimposta, tendo sua
fundamentação nas leis morais da evolução humana e não no instinto de
sobrevivência e perpetuação que move os animais não racionais. São doutrinas
religiosas, políticas e legais que determinam esse modus vivendi. E também são as regras sociais as que dizem a cada
grupo o que é bom.
Não raro,
tomamos conhecimento de comunidades, físicas ou dogmáticas, que praticam e
incentivam a união poligâmica ou a diversificação de parceiros. Assim como
temos também aquelas que incentivam e promovem o celibato e a convivência dos
seus sem fins de procriação. O que conta, realmente, é a forma como as pessoas
pelo mundo estão impelidas a se unir, a se aproximar de seus iguais ou
complementares. O ser humano, salvo algumas exceções, tende a buscar a vida em
grupo, em família, em sociedade, em parcerias. Não somos treinados para viver
sozinhos por longos períodos.
Com o advento
da modernização da vida humana, a carga de trabalho, a monetarização, a
sobrevivência tecnológica, o aumento de ritmo nos centros urbanos, cada ser
humano se viu apartado de suas convivências de escolha por mais tempo do que se
diria confortável. Essa redução da vida social em prol da vida produtiva vem
alterando as prioridades e os fluxos de interação entre as pessoas. Famílias que
se separam, entes que moram longe, grandes distâncias entre cidades, estados,
etc.
Esse
afastamento progressivo gerou a necessidade de aproximação virtualmente
reconfortante, fazendo nascer e avançar os meios de comunicação. Correios,
telefone, celular, internet. Todo um aparato tecnológico foi sendo desenvolvido
para sanar a distância entre os seres humanos. Enquanto este texto é escrito,
estamos em plena era digital, na qual as redes sociais tomam a frente dos
relacionamentos, eliminando distâncias antes quase insuperáveis de maneira
imediata, munidas de aparatos totais como escrita, som e imagem em tempo real.
A causa e o
efeito dessa virtualização das relações interpessoais podem ser sentidos através
de todo o planeta, dos povoados mais remotos até as capitais demograficamente
fervilhantes. É certo, contudo, que grande parte de nós ainda está longe de
qualquer forma de comunicação de longa distância, por mais básica que seja.
Ainda temos tribos africanas, indígenas, beduínos e montanheses, por exemplo,
absolutamente aquém das revoluções da tecnologia que rodeiam a nós, habitantes
da parte evoluída do globo. Outros fatores determinantes são o poder aquisitivo
regionalizado, os sistemas absolutistas de governo, orientações religiosas,
etc. Mesmo assim, é pura questão de tempo para que a tecnologia alcance a todas
as regiões da Terra, sem distinção.
Entretanto, a
aceleração do modo de vida, as constantes atarefações para com o status
financeiro, o alcance de um simples digitar de computador, tudo isso tem levado
o ser humano a afastar-se mais ainda do convívio íntimo com seu semelhante.
Relações pessoais se estabelecem por conveniências, por interesses comuns, por
necessidades. E aquelas que deveriam se estabelecer por afinidade são relegadas
a segundo plano.
Estamos cada
vez mais sós no mundo exatamente por culpa de nossa própria evolução. Estamos
cada vez deixando para mais tarde a tarefa biológica e social de fundarmos
nosso próprio núcleo familiar. E também em consequência da sobrecarga diária,
nos afastamos mas de nosso grupo de origem. Resumindo, nos apartamos do que era
considerado primordial no início de tudo. Nos tornamos os eremitas, a diferença
é que trocamos a caverna pela cápsula invisível a qual vestimos a cada dia e
que nos torna intocáveis aos demais. Somos sozinhos no grupo. O que
descaracteriza esse grupo como tal, restando-lhe apenas a denominação de
multidão.
Ficou no
passado quase remoto a grande comunidade na qual os pequenos núcleos interagiam
e conheciam-se. Cidadelas nas quais cada vizinho conhecia o próximo, em que as
crianças estudavam juntas por todos os anos de escola, que os novos casais eram
velhos amigos de infância. Atualmente, a horda de transeuntes desconhecidos é
um reflexo da modernidade, da emancipação de cada pessoa, do afastamento
social. Mesmo em locais restritos, como uma empresa, comum é e será cada vez
mais que colegas sejam meros desconhecidos. Prédios de apartamento cujos
moradores nunca trocam palavra são exemplos triviais do comportamento discreto
e reticente que toma conta do ser humano contemporâneo e o encapsula em seu próprio
universo restritivo de relacionamentos sociais.
Remontando ao
tempo das tribos e das primeiras comunidades maiores, percebemos o advento do
líder, do alfa, o patriarca ou a matriarca que congregava ao seu redor os
familiares e agregados. Eram núcleos controlados e menores. Os núcleos atuais
são grandes demais e, apesar de sempre haver um líder, este não o é de fato
como seu similar antigo, pois que não interfere diretamente no viver dos
congregados. Nesse sentido, cada um é seu próprio líder e essas lideranças
chocam-se no conflito do derradeiro comando. Não mais com pedras e espadas, mas
com as ferramentas modernas do poder. E assim, cada um sendo líder de um núcleo
formado de um indivíduo, o espaço para o agregamento de outrem segue cada dia
mais restritivo.
Reaver o
conceito original de grupo, hoje em dia, seria encarado como o mesmo que abrir
mão do comando, da liderança, dessa condição exclusiva e excludente que
chamamos independência. Tornamo-nos, sim, independentes e individualistas. De
fato, cada um de nós, humanos modernos tecnológicos, nota com estranheza, e até
como antinatural, a necessidade primordial de conviver em bando, de
relacionar-se íntima e efetivamente com nossos semelhantes. Eliminamos
categoricamente a disponibilidade nossa para com o outro. E se a recíproca é
verdadeira, isolamo-nos, mesmo cercados de gente. É nesse preciso momento, de
isolamento e conquista da independência, que nos tornamos solitários.
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