A febre do artista

Há momentos em que eu invejo a placidez das pessoas comuns, daqueles indivíduos ordinários e sequenciais que, mediocremente, levam suas vidas dia após dia da mesma forma e modelo. Invejo a paz que o não-viver traz a essas pessoas. Invejo o ordenamento constante do cotidiano sem solavancos.

Todo artista tem em si a febre do mais-além. São criaturas miseráveis que jamais se contentam com o cadenciamento dos dias normais, dos meses iguais, dos anos constantes. Artistas são incontentáveis por natureza. Nada, absolutamente nada, os satisfaz por mais que poucos instantes. Nem as mais bravas conquistas ou os sonhos mais difíceis de realizar são álibi para parar sua busca. Felicidade é matéria tão volátil quanto a satisfação.

Sim, eu sou artista. Artista da invulgar, magnânima e rompante arte da escrita. Diferente de meros mortais causais, minhas vidas – sim, são várias – entremeiam-se de aventura, romance, dor, sofrimento, fantasia, ação, mistério, drama e de tudo mais que não cabe na caixa aberta de Pandora que é minha mente criativa. É através desse prismático turbilhão de cores e contrastes que vejo o mundo. Não exatamente o mundo real. Mas, enfim, realidade e arte quase nunca andam juntas pela mesma estrada.

Diferente da pessoa normal, aquela cujas preocupações envolvem a criação dos filhos, as contas de início e final de mês, as férias de verão ou a poupança para a velhice, minhas inquietações se traduzem exatamente nisso: inquietação. Não que eu não tenha também as tais contas a pagar, só não posso – está além de minhas possibilidades – levar a vida com a mera intensão de pagá-las mês a mês. De fato, não consigo fazer disso meu único e notório objetivo, por mais nobre que seja. Preciso de emoções distintas, causa e efeito, paixões e assassínios, inícios abismais e finais pungentes. E preciso disso como de uma droga.

Quisera eu poder acordar todos os dias com a única preocupação de levar guarda-chuva, caso chova. Quisera ter um relógio-ponto avisando-me que é hora de comer. Quisera voltar para casa assiduamente a esperar pelo jantar, pelo telejornal, pela novela. Ansiar por uma cama quentinha e pelo fim de semana de descanso, calçando chinelos e jogando bola com as crianças e o cachorro.

Quem me dera essa obviedade diária, essa exatidão vital de continuidade e repetição. Quem me dera que a mente apenas seguisse a lista de afazeres domésticos sem se atrelar a viagens fantásticas a reinos inexistentes. Quem dera poder levar minha vida a cada dia como se fosse o mesmo e estar contente com isso. Todavia, não é assim. Mesmo que numa tentativa ávida pela normalidade eu me renda ao coloquial, algo incomoda. Sempre cutucando a mente como ponta de estaca no coração do vampiro. E esse incômodo atende pelo nome de imaginação.

Não é fácil, creiam-me, manter a rotina quando, segundo após segundo, a imaginação berra por pontes sobre arco-íris, cavalos de Troia, calabouços e cadafalsos, unicórnios e dragões. Nada fácil conter as vidas de personagens que nos agarram pela gola e gritam personalidades e diálogos o tempo todo. Muito menos fácil concentrar o raciocínio em usualidades quando nomes e lugares que nem existem – e jamais existirão se não os criarmos – jogam-se aos nossos pés replicando atenção.

Sim, a criatividade é um fardo onipresente. Um latejar dolorido, uma necessidade quase física, um permanente descontentamento. Um querer mais do que o que já se tem. Tanto que nenhum prêmio é suficiente, nenhuma alegria é plena, nenhum momento traz paz. É a extenuante maldição dos artistas, criar sem cessar e agonizar quando a criação falha. Nenhum troféu engrandece, nenhum orgulho preenche, pois as vozes das musas sempre pedem mais. É nesse momento que eu invejo os pobres de espírito, os ordinários, os comuns.

Que bom seria apenas descansar de tudo isso, parar o espírito e limitar-se a existir, assim, sem perspectivas maiores do que o final de semana de chinelos. Mas, não é assim. Eu sou artista e, como artista, sofro os arroubos que a arte exige de mim. Jamais farei parte do rebanho, jamais me deixarei embalar pela mesmice aconchegante dos chinelos de domingo. Jamais serei menos do que sou ou mais do que desejaria. Seremos somente nós, eu e minha imaginação. A cada texto, buscando um mero momento de silêncio e alívio depois do ponto final. Até o próximo texto.

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